AUTOR(A)
Letícia Chimini¹AUTOR(A)
Letícia Chimini¹27 de janeiro de 2022
Organizamos essa prosa em 3 categorias: a dinâmica do capital em consonância com o Estado, a fome e a práxis dos movimentos sociais populares. Cabe salientar ainda que as questões elencadas aqui são parte da pesquisa, reflexões da tese, defendida no ano passado, que por sua vez é fruto da práxis e luta coletiva. E as análises partem de um lugar, da luta de classes e nessa luta, somos classe trabalhadora. E isso é relevante pois o campesinato que produz 70% dos alimentos que vai à mesa do povo brasileiro, ocupa 26% das terras e apenas 13% dos recursos de fomento/financiamento para a produção agrícola.
A questão agrária, a luta de classes e a resistência são categorias transversais e perpassam a luta e trabalho do campesinato organizado, e diretamente, relacionado com a produção de alimentos, com o impacto dessa produção na economia e com os processos de resistência na luta de classes.
A implementação da Revolução Verde no Brasil ratificou a escolha de um desenvolvimento econômico através do modo de produção capitalista, que se deu a partir da década de 1950, com mais ênfase a partir de 1960, e contou com o apoio e com o financiamento do governo brasileiro, principalmente, no período denominado desenvolvimentista, com a Era Vargas, Juscelino Kubitschek e, principalmente, no período do Regime Militar. A partir de então, ocorre uma “ideologia da modernização agrícola”, representada através do binômio modernidade e desenvolvimento, este visto como crescimento econômico, homogeneizando as culturas “à imagem e semelhança de suas metrópoles imperialistas”.
Logo, falemos também da outra face da produção de alimentos, da consequência da desigualdade social: da fome.
“A fome deve ser o ato doloso de produzir famintos”.
(Thiago Lima)
O primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, é reconhecer que os homens e mulheres precisam estar em condições de viver para poder “fazer história”. Para viver, precisamos de comida, água, moradia, vestimenta e alguma coisa mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação essas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história que, ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para nos mantermos vivos. (MARX, 2009) .
Marx (1982) denuncia que, quando a fome se torna presente ao trabalhador e à trabalhadora, muito já foi lhes foi retirado, inclusive a “sua condição de existência”, pois, antes da falta de comida, outras necessidades básicas já foram negligenciadas, como a moradia, a saúde, o saneamento, entre outros. Citamos Marx para expor uma realidade comumente vivenciada e que avança na medida em que se desenvolve o capital. A fome é anterior ao sistema capitalista, mas nele é causa e consequência, que aponta para o aparente e encobre o que o econômico manipula na política. É causa porque pessoas mal nutridas e desesperadas pela fome são necessárias para o sistema capitalista. É consequência porque a prioridade do sistema capitalista é o lucro em detrimento das vidas humanas.
A fome é consequência e ao mesmo tempo causa do sistema de produção hegemônico e embora seja a expressão mais evidente, é também a mais naturalizada da sociedade capitalista. A fome se materializa nas pessoas famintas e não é tratada como um crime por aqueles que a produzem ou a permitem. Ela é naturalizada como um aspecto da natureza, como uma paisagem que compõe as cidades. Essa naturalização não ocorreu de forma despretensiosa, foi construída:
Foram séculos de trabalho intenso e incansável para isolar as pessoas famintas e para anestesiar permanentemente a sociedade da dor que pode ser ter empatia com quem tem fome. Foram necessárias revoluções industriais e a disseminação global de um sistema social – o capitalismo. Foi necessária a instauração de um sistema político internacional sob a mão pesada do colonialismo. Foi necessária a instalação estrutural do racismo como princípio hierarquizante da distribuição de recursos, sobretudo dos alimentos (Patnaik, Patnaik. 2017; Almeida, 2019). Foram necessárias diversas medidas paliativas e diversos sistemas de crenças para que as pessoas e os governos, em geral, aceitassem os famintos como parte natural da paisagem. Principalmente as mulheres famintas, com suas filhas e filhos condenados, antes mesmo de concebidos, a terem seu potencial humano limitado como herança de gerações de mães subnutridas. Foram necessárias instituições maleáveis e adaptáveis às elites e populações, em diversos tempos e espaços, para que as pessoas famintas, enquanto tragédia – repito –, se tornassem parte natural da paisagem. Lamento, mas é a vida, dizem. (LIMA, 2021, online)
Ou, porque deus quis, argumentam eles. E, ainda, é comum presenciarmos a criminalização dos pobres pela sua própria condição.
A privação à alimentação cria vulnerabilidades que faz o capital avançar, é justamente a escala da acumulação que define a escala da fome. Refutamos que a baixa do PIB seja o causador do aumento da fome no Brasil. O PIB é um indicativo econômico e a sua queda retrata uma diminuição das atividades econômicas e, sendo assim, a sua queda reflete as pessoas comprando menos. Isso é a aparência de uma crise gerada pelo próprio capital. Não é a diminuição do consumo que gera a fome, é a acumulação do capital que chega a níveis que não suportam a reprodução das condições de vida do trabalhador e da trabalhadora que gera a fome. Assim como não é o aumento do PIB, que responde ao aumento de produção do agronegócio, que garantirá que a comida chegue em todas as casas.
Não há superação do velho imperialismo, não há nada de novo ou de “neo” abaixo do deus mercado, senão a “superacumulação de capital” de maneira cada vez mais acirrada sobre as formas não capitalistas de pilhagem e de superexploração da força de trabalho. (CHIMINI, 2021, p. 71). A perversidade desse sistema, associada ao estado, recai sobre o rural brasileiro e aumenta suas ondas na medida em que avança sobre as cidades, chegando com mais força nas periferias; vai deixando um rastro de destruição. A fome no mundo, a falta de alimentos, a falta de água potável, a destruição ambiental, o aquecimento global, a pandemia do Coronavírus e outros fatores dialogam, diretamente, com o campesinato, na sua missão de produzir alimentos de forma agroecológica, na defesa da terra para agricultura camponesa, na prioridade da produção de alimentos para a soberania alimentar. (CHIMINI, 2021, p. 179)
A fome se mata com comida. Afastar o povo da produção de alimentos é estratégico para a finalidade de acumulação de mais capital e isso passa pela ausência de políticas públicas de incentivo da produção camponesa, mas, primeiramente, pelo cercamento das terras e das águas. As mãos camponesas fazem brotar alimento da terra que por meio de ciclos curtos de comercialização, faz chegar ao povo, sem atravessadores, alimentos mais saudáveis e com preços mais justos. Falar da fome, atentando para o êxodo rural, não expõe apenas a subsunção do campesinato ao capital, mas de toda a classe trabalhadora.
É perversa a forma como se engendra o capital e não há compatibilidade da fome com a construção de uma sociedade justa e igualitária, no acesso aos bens de produção e aos bens produzidos, principalmente aos alimentos. A fome faz um trabalhador, uma trabalhadora, trocar um dia inteiro de trabalho por um prato de comida. Um povo para resistir, lutar e avançar na conquista de direitos precisa estar bem alimentado, com um corpo bem nutrido. Não há corpo saudável que comungue com a fome.
Aqui, partimos de uma resistência que é coletiva e popular, dos movimentos socias populares.
O popular é adicionado à denominação movimento social por representar a diversidade do povo, não é acadêmico, não é público, é o legado popular orientando a luta de classes. No cotidiano do trabalho e da militância, faz-se necessário, não somente saber operacionalizar uma política pública ou um programa social; é necessário que os sujeitos que recorrem ao Estado para que sejam atendidas suas necessidades, compreendam a sua própria história, a história de seu povo, sejam conscientes das condições históricas de sua classe e dos movimentos que geraram as profundas desigualdades sociais que assolam a sociedade brasileira.
Resistimos e avançamos quando produzimos agroecologicamente, na forma de fazer circular os alimentos pelo campesinato organizado e mobilizado, no diálogo diretamente entre produtores e consumidores, na troca de sementes crioulas, de saberes e receitas, das crenças, das rezas, das rodas de conversas e de formação, na troca de dias de trabalho e na construção da solidariedade que só a coletividade é capaz. A missão do campesinato de produzir alimentos saudáveis faz verter consequências nos territórios rurais e urbanos, que une a classe trabalhadora do campo e da cidade, mas que encontra limites quando esbarra, por exemplo, na desigualdade de gênero, visto ser a camponesa a maior incentivadora e incrementadora da produção agroecológica nas unidades de produção, nas comunidades. A inserção dessa produção em feiras e mercados criados pela organização e mobilização, tanto daqueles que produzem, como daqueles que adquirem, apontam para novas possibilidades de comércio, circulação que alguns denominam economia solidária. Economia “alternativa” à economia hegemônica que foi incentivada por políticas públicas promovidas pelos governos anteriores em resposta à pressão do campesinato organizado e que atentaram para as condições concretas e históricas da agricultura camponesa familiar. Isso possibilitou uma inserção direta do campesinato, estreitando as distâncias entre quem produz e quem consome, reduzindo também o tempo da produção na logística do transporte, nos caminhões e nos estoques dos mercados. Isso reduz muito o desperdício e vai de encontro aos ciclos curtos de comercialização.
O bloqueio de rodovias, a ocupação de prédios públicos, a ocupação de propriedades sem função social, os atos de repúdio e de denúncia, entre outros, são práticas utilizadas para chamar atenção da sociedade para apoiar a luta do povo, mas, na maioria das vezes, é para forçar o Estado a agir de acordo com os interesses e as necessidades de seu povo. As mídias hegemônicas execram tais atos, ganhando a simpatia da ala mais conservadora da sociedade que considera a reação do oprimido um ato de vandalismo e não de denúncia. A resposta do Estado vem em forma de criminalização dos movimentos sociais que compõem a Via Campesina, dificultando, cada vez mais, a luta por direitos.
Como toda a práxis realizada pelos movimentos sociais populares, a denúncia vem seguida de anúncio, ou ainda, as denúncias das injustiças vêm seguidas por anúncios que falam sobre o projeto societário construído coletivamente. às feiras da reforma agrária, feiras agroecológicas, CSA, encontros unitários, formações políticas conjuntas, estratégia de apoio eleitoral, etc… São ações guiadas pelos processos de resistência que fortalecem a classe trabalhadora nos territórios latino-americanos. São práticas e tarefas realizadas com intencionalidade política.
A agricultura camponesa organiza-se através da agroecologia. Do ponto de vista da produção, são priorizados os alimentos e essa produção relaciona-se com a natureza, priorizando a vida de quem produz e de quem irá ingerir essa produção. A produção é realizada de forma diversificada, respeitando as identidades e os biomas de cada território. Não há utilização de transgênicos nem de venenos e a produção começa com as sementes crioulas. Quantos aos insumos utilizados, são disseminadas práticas de elaboração para as mais diversas dificuldades que possam ocorrer, a partir de elementos que existam na própria propriedade, gerando autonomia na agricultura e redução dos custos. Do ponto de vista social, a agroecologia também aparece como uma forma de viabilizar as próprias estruturas da luta e fortalecer a autonomia de quem produz, possibilitando a superação das amarras do capital no meio rural. As relações sociais na agroecologia perfazem os aspectos históricos, políticos, econômicos de manutenção e reprodução da vida, culturais e coletivos e, de fato, possibilitam formas autônomas de produção
Na história do Brasil, quem tem terra tem poder, mas, para a Via Campesina, ter a terra somente não basta, há que relacioná-la com um modo de produção, uma forma de produzir que não tenha como finalidade o lucro a qualquer custo, que é a forma como o capital se relaciona com todos os âmbitos da vida e todos os segmentos da sociedade. Por isso, ratificamos que capital não é o dinheiro e sim as relações de poder, de exploração e expropriação. O dinheiro é a forma fenomênica do capital, é como se materializa.
A totalidade do território brasileiro é chão de lutas e é no cotidiano que elas são travadas. Em contraponto aos desmontes, por parte da sociedade civil organizada, ocorre ampla defesa dos direitos sociais e humanos frente aos ataques constantes aos direitos que estavam positivados na Constituição Brasileira – CF/1988. Todavia, ratificamos que são nas raízes sócio-históricas que se estruturam as condições para a superexploração: no racismo, na desigualdade de gênero, na má distribuição da terra. A agricultura é carregada dessas velhas estruturas conservadoras, patriarcais e racistas e, por isso, a agroecologia não pode se desvincular da luta de classes, do feminismo e da luta antirracista. É com muito trabalho e historicidade que se constrói a agroecologia na prática, na perspectiva da luta de classes, de gênero e de raça e, por isso, apresentamos a resistência dos movimentos sociais populares que são mobilizadores de processos coletivos, geradores de autonomia e construtores de emancipação humana.
Nesse contexto, de luta de classes, evidenciamos o campesinato como sujeito político de uma história que remonta a expropriação, mas também a resistência e que tem um papel fundamental na saída das crises colocadas pelo capital, mas, muito além de sair das crises periódicas geradas pelo capital, é necessário construir outras formas de organização da sociedade que não passe pela exploração da força de trabalho e pelo acúmulo e centralização de mais capital. Desvelamos processos geradores de autonomia que vão na direção da defesa dos direitos humanos, do fortalecimento das identidades coletivas, da cultura que é memória e também história contra-hegemônica, da produção agroecológica, das formas de circulação que redirecionam e mobilizam a renda e que fazem resistência ao sistema capitalista.
A circulação da produção camponesa não ocorre fora do sistema capitalista, mas atuamos na resistência, causando fissuras e denunciando as contradições e injustiças e, principalmente, aproximando o povo da comida, tirando cada vez mais o capital e seus atravessadores do processo. Produzir alimentos agroecológicos implica disputar o poder econômico e político na perspectiva da soberania nacional, da formação sócio-histórica que expropriou a terra para manter privilégios, mas que deixou nos territórios a marca da luta de classes por melhores condições de vida e de trabalho, que perpassa pelas infraestruturas, por acesso aos serviços básicos, pela educação, pela comunicação, pelo direito ao trabalho e à vida digna e por relações que não sejam atravessadas pelo capital.
¹ Assistente Social, Mestra em Desenvolvimento Regional (UNISC), Doutora em Serviço Social (PUCRS), Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores/MPA.
MARX, Karl. Miséria da filosofia. Tradução: José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. O processo de produção do capital. 7. ed. São Paulo: Difel, 1982. v. 1. (Livro 1)
LIMA, Thiago. Toda fome é uma decisão política. Carta Maior, [S. l.], 01 fev. 2021. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Toda-fome-e-uma-decisao-politica/5/49838 Acesso em: 22 jul. 2021.
CHIMINI, Letícia. Produção e reprodução do capital nas economias dependentes e as implicações na questão agrária: o acirramento das desigualdades e os processos de resistência do campesinato brasileiro. 232 p. Tese (Doutorado em Serviço Social) – PUCRS, Porto Alegre, 2021.
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